Parada poética

Abaixo reproduzo o e-mail enviado por Marina Mara, uma das organizadoras da Parada Poética, aqui em Brasília. Leiam, tomem pé do projeto, uma espécie de veneno contra a caretice dessa cidade e de qualquer outra.

“Olha que pertinente, minha gente…

A Parada Poética foi realizada no dia 24 de março de 2012, na Praça do Índio – 703 Sul, onde Galdino foi covardemente queimado há exatos quinze anos enquanto dormia na parada de ônibus. Nesse evento, essa mesma parada foi revestida com páginas do livro de poemas Sarau Sanitário, de minha autoria. Porém, uma semana após essa intervenção humana, quase todos os poemas já haviam sido levados da parada…

Que vandalismo, né?

Néra não… era só fome de beleza do povo… pois foram retirados com cuidado quase cirúrgico e levados de lá. Pensando nisso, em realmente ressignificar a-parada-com-a-história-mais-triste-do-país, convido a quem estiver afim a entrar nessa empreitada.
Que tal, quando passarmos por ali, deixarmos um poema de vez em quando? E que tal mais e mais pessoas fazerem o que fizemos, colar páginas de seu livro de poemas favorito na parada para realmente compartilhar algo de bom com os outros?

Quem quiser participar é só chegar e colar com durex, grude, cola… pode ser escrito à mão, pode ser recorte, xerox, poesia visual – o importante é que esteja em constante mudança para que sua visitação seja sempre algo novo ao público. Convide seu amor a colar poemas com você e peça seu cangote em namoro lá mesmo. Chame os amigos para tocar uma viola enquanto rola a intervenção, filmem, fotografem, façam piquenique. Usem aquela praça linda, reformada e cheia de árvores e de espaços vazios de gente.

A intenção é essa, dar uma parada poética no dia para colocar um pouco de poesia em sua cidade. Minha intuição me sopra nesse momento que essa ação conjunta e contínua chamada Parada Poética seja a resposta dos brasilienses à barbárie que ocorreu ali quinze anos atrás e da forma como deveria ser – leve como é alma de índio.
Então, pegue um livro de poemas, tire a poeira dele e o compartilhe com a cidade. Além de ser um ato de ativismo sociopoético também é um programa massa. Há tempos não me divertia tanto quanto no feitio daquela intervenção.

Ah, e quando for mostrar os monumentos da cidade para alguém de fora, dê uma passada na parada poética e diga:
Brasília mesmo é assim, ó.

Tamo junto?”

http://www.marinamara.com.br/2012/04/10/parada-de-onibus-vira-monumento-a-poesia

Não adianta fazer yoga e não dar bom dia ao porteiro

Para Maressa Omena

Os frequentadores do restaurante natural

vestem camisetas de Marley Gandhi Luther King e Chaplin.

Usam cabelo rasta

ferrinhos no nariz no beiço acima do olho

acendem incensos

e outras coisas

que fazem fumaça também

pra libertar a essência cósmica

interior transcedente de não sei onde

(eles não explicam muito bem).

Praticam taishi

meditação

terapias do além

seguem o guru malabarashibalabadoooom

e gritam que matar boi é crueldade

animalidade bestialidade

inferioridade espiritual.

Os frequentadores do restaurante natural

vão às passeatas

pedir pelo aborto

o amor entre iguais

o fim da corrupção

e ao fórum social

pela igualdade entre os povos.

Mas se o mendigo esfarrapado

vomitado cagado

entra de mão estendida

pedindo comida,

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!

Aí é que eles berram mesmo:

mandam chamar o gerente

cadê o dono desse troço

tira esse sujeito daqui pô qualé!

Dá só um tempo cara

Ok muito bonita sua mensagem na rede social falando sobre a esperança renovada a cada dia e que o sol oferece um belíssimo espetáculo todas as manhãs e que ninguém nota e que se a vida te der um limão faça uma limonada e papapa papapa tralalá tralalá sabe eu também concordo e penso assim mas de vez em quando sou uma velha e enorme sucuri que comeu um boi inteiro que não caiu bem e precisa vomitar tudo a carne a pele o esqueleto do desgraçado sabe a tristeza também é degrau da escada não me leve a mal mas achar que tudo desabou e que a maior e mais dura laje do arranha-céu foi esmagar justo a bosta da tua cabeça é parte da condição humana e chorar também é fisológico como rir gritar fazer cocô e além do mais minha vó dizia que choro faz muito bem pros pulmões e como sou obediente me deixa aqui no canto sossegado me desmantelando em lágrimas soluço nariz escorrendo meleca aparecendo que eu vou recuperar de novo a porra da minha paz e vou sair por aí cantando róquenroll e você não vai nem dizer que era a mesma pessoa valeu?

Semana Santa, 1985

Quando o Marco ligou, já eram umas cinco da tarde, e ele assistia a vídeo clips no canal 9. É que na última hora apareceu uma viagem pra Rio das Ostras, na época em que a cidade era só praia e sossego e andava-se ao sabor do vento.

É naquele esquema: miojo, pão com ovo e colchonete para dormir onde der.

Tô na fita? Quis saber.

Se eu tô te ligando, animal!

Quem vai? E já procurava o pai pela casa. Precisaria negociar aquilo. Abril mal começara e as notas já estavam daquele jeito. Para ficarem ruins tinham que melhorar muito.

Ué, quem vai? Eu, Wagão, Mário, Maurão, Serjão…os mesmos otários de sempre.

Putz, só homem!

E ainda quer que a gente leve mulherzinha pra você?

Conseguiu umas pratas com o pai. Dava para ir, voltar e fazer algumas gracinhas por lá.

Lembra dos olhos do velho quando jogou a sacola de nylon nas costas antes de bater a porta. Por trás das lentes grossas, chegara definitivamente a certeza de que o filho começava a bater asas. Dali a um mês faria 17 anos.  Impossível segurar em casa, num feriado, uma fera daquela cheia de hormônios e sede de aventura. Só restava pedir juízo e rezar para que funcionasse tudo que ensinara até ali.

Na Rodoviária, entre partidas e chegadas, procurava pelo grupo. Acima do tumulto, pairava a ânsia pela farra, e amarrada a ela, feito rabiola na pipa, uma sensação de que haveria para sempre música no ar e que a vida toda seria daquele jeito, uma vontade permanente de dançar e dar risada. É claro que depois o tempo passou mostrando a verdade, e a velha chata da idade adulta desligou a música imaginária. Mas a lembrança daquela sensação nunca ninguém roubou dele.

Você tá parecendo uma hippie grávida. Um deles observou quando se encontraram. Escarnecendo, apontava a camiseta verde e branca, estilo mesmo bicho-grilo, comprada na feira da Praça Sães Peña, tão na moda naqueles anos 80. Hoje, ao olhar fotos da época,  parecia mesmo ridícula.

Gargalhada geral. When the moon is in the Seventh House, e um deles cantarolou a música de Hair.

Mandou-os para aquele lugar, eles e as mães de cada um, no linguajar próprio dos machos de 17 anos. Era a forma de dizer que se gostavam, que era muito bom estarem juntos: sacaneando e xingando uns aos outros.

Só conseguiram ônibus para depois de meia-noite, e assim mesmo para viajarem em pé. Quando entrtou, sacou que dava para viajar no banheiro, sentado na privada, com janelinha e tudo.

E assim foi bem uns 70, 80 quilômetros. Quando vinha alguém apertado usar o banheiro, ele saía, depois voltava. Até que uma hora entrou um coroa. Demorou mais de 40 minutos para sair. Aí não deu mais para ficar lá dentro, teve que ir se equilibrando no corredor.

Mesmo assim, de onde estava, conseguia um pedaço de janela para ver a estrada rompendo a madrugada. A lua cheia acompanhava o ônibus e clareava vilas pobres do estado do Rio, tornava possíveis seus sonhos de garoto, deixava em aberto hipóteses improváveis, como a de encontrar naquele feriado a menina que conhecera na última festa e de quem o telefone acabou não pegando.

Lá na frente, nas primeiras poltronas, um bêbado toda hora gritava: isso é lindo Carlos Alberto! Alguém próximo, talvez tão ou mais embriagado, arrastava um trecho de bolero ou samba-canção, e o sujeito consagrava a ébria cantoria: isso é lindo, Carlos Alberto! E quando o silêncio se prolongava, permitindo até um cochilo, o pinguço insistia: Carlos Alberto, isso é lindo!

Jamais se soube se havia mesmo um Carlos Alberto dentro do ônibus, mas durante o tempo em que a vida permitiu o convívio de todos, a beleza para eles, fosse da música, das mulheres, do dia ou da noite, possuía uma expressão que a sintetizava: isso é lindo, Carlos Alberto!

Quando chegaram, a melhor das novidades: Mário, o mais velho da tropa, espécie de gerentão sempre preocupado em dar civilidade à bagunça, esquecera a chave da casa.

Sim, havia uma cópia na casa de um conhecido, mas quem iria bater na porta do sujeito às quatro da manhã?

Seu merda! Gritaram quase em coro, no que foram seguidos por dois ou três bêbados que se arrastavam à saída dos bares fechando. Gargalhadas tomaram o céu pleno de astros e estrelas ofuscadas pela lua iluminando também a vida.

E agora, onde a gente vai dormir? Um deles ainda perguntou quando a resposta era óbvia. Mário apontou com o nariz a areia da praia: olha que cama enorme!

Fizeram de travesseiros as sacolas, e de dentro delas puxaram os lençóis que no Rio as mães haviam providenciado. Ficaram assim empilhados, sete ou oito um ao lado do outro, mal protegidos do sereno. Passasse por ali o serviço social, recolheria todos para o abrigo da prefeitura.

É claro que não dormiram, no máximo dez ou quinze minutos de cochilo revezado. Quando o dia clareou, contavam piadas indecentes e disputavam quem dava o peido ou arrôto mais alto.

Saindo do mar, o sol saudava o grupo na porta de uma padaria. Caras amassadas da noite vigilante não escondiam a felicidade dos olhos quando o rapaz do balcão entregou a cada um a respectiva média com pão e manteiga. Chegou na hora em que ele e mais uns dois cantarolavam Dire Straits, ecos do Rock in Rio três meses antes. O fato é que em tudo, na música, no pão, no café, era como se houvessem mesmo entendido o recado do sol: vivam a vida, rapazes, em seus menores e mais deliciosos momentos.

Aqueles dias entraram para a posteridade.

Ao longo deles, dois ou três pileques de caipirinha foram curados com todos de cueca na piscina, para escândalo da classe-média do condmínio.

Feito folha seca de outono, o vendaval do tempo varreu o nome da menina que conheceu no sábado numa roda de violão, mas lembra que ela – Marina ou Fabiana? –  substituiu a outra, da outra festa, pois aos 17 anos as paixões duram tanto quanto um feriado.

Voltaram no domingo carregando mochilas pela rua de terra que levava à parada do ônibus, magros e abatidos com a dieta de miojo e batida de limão. A roupa de um, o cabelo de outro, nada escapava às incansáveis piadas de todos. Dá-lhe, porco! E gritavam toda hora, porque sempre havia um arrotando alto no fim da fila, horrorizando quem passava.

Pouco antes de embarcarem, um deles reparou que a lua, já minguante, nascia rosada, pois no extremo oposto o sol se despedia daqueles felizes estropiados. Dessa vez ninguém falou nada, mas todos pensaram o mesmo e ao mesmo tempo: Isso é lindo, Carlos Alberto!

Abril*

Desde quando se lembra, abril é sempre belíssimo. A nítidez é a marca dos dias, em que as cores respeitam rigorosamente as margens. O que ele quer dizer é que em outros meses o borrão da névoa sempre mistura os azuis de céu e mar ou esmaece o verde da grama, desbota o amarelo das margaridas. O resto do ano eram pinturas impressionistas.

Abril, não. Junto com maio, abril é fotografia em alta definição, em que as cores ocupam com exatidão o espaço que lhes pertencem em cada paisagem. Não há céu transbordando para o mar nem plantas e flores manchando o sol. Cada elemento ocupa seu quadro com a precisão de um recorte, sem vazamentos. Talvez por isso as cores lhe pareçam mais concentradas, justamente porque são impedidas de se diluírem.

Mas abril é também mês de resfriados, pneumonias nascidas de gripes mal curadas, febres à beira do delírio. É em abril que as manhãs ventam geladas e sem nuvens, e por isso traiçoeiras. Ao ver o sol cegando o mundo, apostamos no calor e ganhamos as ruas apenas com nossas frágeis camisetas de verão. Quando damos pelo casaco, já é tarde, se foi metade do caminho, o ônibus está quase no ponto de descida, a hora do expediente está quase em cima. Mas aí a garganta já arde, não deixa engolir direito; a cabeça começou a doer do nada, um frio estranho e repentino nos faz tremer. E então nos enxergamos na goela do dia desejando apenas desaparecer em nossas cobertas.

Quantas dessas cenas tem vivas na memória: a manhã  mais espetacular que um cristal lavado, e ele escondido do frio num grosso capote, queimando em febre nos braços do pai, no colo da mãe, rumo ao médico que lhe receitaria injeções e xaropes repulsivos.

Por essas combinações da vida com o calendário, abril lhe desenterra da memória sobressaltos e a ocorrência de contratempos. Não tem o máximo da certeza, ou – vá lá – não tão nítida quanto as cores do mês – mas parentes e amigos queridos morreram em abril, de quando também recorda ter perdido o emprego e passado longo tempo batendo às portas. Fora em abril que batera o carro aquela vez, reduzindo-o a sucata? Se não era, estava perto de ser. Ano passado havia sido o abscesso no dente, a extração às pressas, uma semana de molho. Coincidências que desmerecem a aquarela desses dias, ele pensa no sinal fechado, olhando no horizonte a cortina alaranjada, rastro do sol desaparecido.

E este ano, o que vai ser? Pelo menos até agora, uma hérnia com certa urgência cirúrgica.

Queria virar tinta guache e ser espalhado na natureza por um pintor amalucado, embora de agudo senso estético. Ele demora a ir quando o sinal abre, porque está escolhendo que cor gostaria de ser.

*Publicado em 9/4/2010

Rolar para cima